Presidente do Sindiproesp participa, na Defensoria Pública, de discussão sobre o Princípio da Inocência e pública artigo sobre o tema

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Revista Justificando

Terça-feira, 2 de abril de 2019

Por Márcia Semer.

Fake decisions, STF e presunção de inocência

Vivemos, de maneira bastante intensa no Brasil, a era das fake news. A expressão, tomada emprestada da língua inglesa, nada mais é que a notícia falsa, mentirosa, distorcida da realidade que, em tempos de mídia social, ganha importância porque difundida em larga escala e de modo a direcionar a percepção das pessoas sobre assuntos e personagens que compõem o universo político.

As fake news praticamente interditaram o diálogo político no país. Divulgando em espiral contínua versões absurdas, quando não imaginárias, dos mais variados temas, sepultam a racionalidade e dão ares de seriedade aos mais estapafúrdios argumentos: o de que a terra é plana, por certo, aparece como um dos mais notórios, embora muitos outros componham o que deveria ser nada mais que parte do anedotário nacional.

Ocorre que as fake news têm se mostrado aptas a converterem a piada em drama, o absurdo em coerência, o despropósito em propósito, o non sense em sense.

Os estudiosos vêm apresentando diversas explicações para o fenômeno, que vão desde a deficiência educacional da cidadania brasileira até os laços de confiança existentes entre os integrantes das redes sociais, passando pelo efeito manada derivado de pânicos morais, dentre outros.

O sucesso das fake news- que, dizem, ajudou a eleger Jair Bolsonaro- tem impulsionado o que podemos chamar de fake history, vale dizer, o falseamento da realidade histórica, o chamado revisionismo histórico. Nessa categoria das tentativas de promoção do revisionismo histórico, encontramos aberrações como as protagonizadas pelo embaixador Ernesto Araújo ao associar o Nazismo e os estudos sobre mudança climática à “esquerda global”; bem assim as manifestações de exaltação à ditadura militar por Jair Bolsonaro, a partir da celebração do Coronel torturador Brilhante Ustra como herói nacional ou da orientação para comemoração nos quartéis, em 31 de março último, do Golpe Militar de 1964.

Em paralelo com as fake news e as fake history, o STF vem tangenciando o universo das fake decisions, que no jargão jurídico tradicional costumavam ser entendidas como decisões “contra legem”, isto é, aquelas proferidas contrariando a própria lei.

Este é o caso da decisão do STF de fevereiro/2016 sobre a presunção de inocência, proferida no HC 126.292. Trata-se de decisão contrária à Constituição, que promove um revisionismo constitucional, a partir de um falseamento do conteúdo explícito da Carta.

A fake decision mostra-se a mais grave dessas modalidades de fraude, na medida em que é revestida de institucionalidade, de aparente cientificidade e de autoridade.

Curioso constatar, porque paradoxal, que a proliferação desse universo fraudulento de notícias, de versões da história e de decisões judiciais aparece como parte do discurso de combate à corrupção, num sucedâneo de vacina elaborada com superdose de vírus vivo ou de veneno, capaz de matar o paciente.

Elaborada em momento de reação democrática à ditadura – não nos esqueçamos do célebre discurso de Ulysses Guimarães no ato de promulgação da Constituição Cidadã: “Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.” – a Carta de 1988 é bastante cuidadosa no trato dos direitos e garantias fundamentais.

Sobre a Presunção de Inocência, em especial, a Constituição expressamente dispõe, em seu inciso LVII que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, explicitando, logo em seguida, no inciso LXI que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”, e no inciso LXVI que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança”.

Do conjunto desses mandamentos constitucionais resulta inequívoco que antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória as únicas prisões possíveis são a prisão em flagrante e a provisória, cuja decretação, nas modalidades temporária e preventiva, segue exigências próprias da cautelaridade, cuja finalidade é garantir o adequado julgamento até o trânsito em julgado da decisão.

A fake decision do STF, que admitiu o aprisionamento de réus fora dessas possibilidades e antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, teve variados e importantes efeitos nocivos: (i) fortalecimento da política de encarceramento; (ii) descrença na força da letra da lei; (iii) descrença na institucionalidade; (iv) insegurança jurídica para esse e outros temas.

Mas, para além das consequências diretamente relacionadas com o objeto da decisão, essa fake decision, esse revisionismo constitucional patrocinado em rede nacional pelo STF serviu como espécie de “gatilho”, de chave mestra para a entrada do país no mundo das fakes. Afinal, se a mais alta Corte de uma nação admite leitura “criativa” da letra expressa de sua própria Constituição e infirma substancialmente o que está escrito, resta a todos o “sei que nada sei”, o “vale tudo”, o “salve-se quem puder”. Esse episódio deixou claro que a sociedade brasileira estava “madura” para a avalanche de fake-tudo que remodelou as relações sociais e políticas no país.

Relacionar essa e outras decisões judiciais que encarnam a espécie fake decision com os rumos da vida nacional é tema dos mais atuais, por certo merecedor de alentados estudos.

A mim, o que instiga é o turn over, é saber se eventual correção da rota, se o retorno à constitucionalidade tal qual ela está descrita e tal qual sabidamente foi projetada, será capaz de devolver os fatos, a história e as decisões judiciais aos trilhos, normalizar e apaziguar as relações sociais.

Na decisão sobre Presunção da Inocência que o STF tem em mãos está em jogo bem mais que os contornos constitucionais do tema; está em jogo se o Brasil seguirá um país fake ou se teremos a chance de nos afirmarmos, definitivamente contrariando De Gaulle, como um país sério.

 

Márcia Semer é Procuradora do Estado de São Paulo. mestre e doutoranda em Direito do Estado pela USP presidente do Sindiproesp.
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