Nenhum direito a menos

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Desde há muito estudamos, aprendemos, ensinamos que o ser humano é dotado de um atributo único chamado razão.

Estudamos, aprendemos e ensinamos também que essa razão norteou a formação da sociedade em que vivemos, fundada num pacto social, num grande acordo, que tem como fiador o Estado, na medida em que a ele cabe garantir a boa convivência entre todos.

Desde Hobbes, ainda no século XVII, passando por Locke, Montesquieu, Rousseau, pelos federalistas norte-americanos, só para ficar na tradição contratualista, todos depositam no Estado o papel de harmonizador social.

Tanto é assim que o iluminismo abriga a “fraternité” ou, em outras palavras, a solidariedade como elemento essencial e fundante do Estado burguês.

Encontra-se, por certo, na “fraternité” ou na solidariedade a razão de existir da Previdência Social. Assim, a mesma razão que justifica o pacto ensejador da existência do Estado, impõe, para sobrevivência deste acordo, mecanismos de equilíbrio social aptos a garantir certo grau de, digamos, justiça ou de convivência minimamente pacífica da sociedade. A Previdência Social é inequivocamente dos mais importantes mecanismos de justiça e pacificação coletiva.

Daí que mexer nesse importante elemento de equilíbrio social é sempre iniciativa grave, que não pode se realizar sem boa medida de consenso, nem em qualquer momento.

Dito isto, é o caso de se analisar se vivemos no Brasil um panorama de consenso e um momento adequado para o encaminhamento de uma reforma previdenciária. A resposta, como todos podem intuir, não é de difícil identificação.

O Brasil, como sabemos, vive período de forte instabilidade econômica, política e social.

Estamos sob governo tampão, ilegítimo para uma parcela significativa da população, cujos condutores principais estampam diariamente as páginas e telas dos jornais delatados pela solicitação ou recebimento de recursos não contabilizados de empreiteiras país afora. O mesmo pode se dizer de inúmeros parlamentares, insones com a iminente publicidade da famosa “lista do Janot”.

Concomitantemente, o país experimenta retração econômica de envergadura, responsável por milhões de desempregados e consequente queda substancial da arrecadação tributária.

Tudo aliado a enorme insatisfação dos mais diferentes setores sociais com a condução e serviços do Estado, insatisfação essa vivenciada num ambiente de hostilidade e polarização política sem precedentes.

Dito isto, parece fácil concluir que o momento, apesar de toda campanha midiática em prol da iniciativa governamental, é, racionalmente, dos mais infelizes e perigosos momentos para realizar a chamada Reforma da Previdência.

Nos últimos 30 anos experimentamos no Brasil duas reformas previdenciários. A primeira no Governo Fernando Henrique Cardoso e a segunda no Governo Luís Inácio Lula da Silva. Ambas ocorreram, e não por acaso, após eleições retumbantes dos líderes de governo, em momentos em que a coesão social era grande e a legitimidade governamental também.

Patrocinar, portanto, uma reforma previdenciária neste ambiente de anomia ou desorganização que o país atravessa é uma aventura no mínimo irresponsável, isso para nos circunscrevermos aos limites da razão, sem considerações de ordem ética.

O momento é para cautela e não para arroubos.

No cenário conturbado, embaçado, enevoado de nossos dias #NenhumDireitoaMenos.

Como ensina a lição passada por verso dos mais primorosos de nosso melhor cancioneiro:

“Sem preconceito

Sem mania de passado

Sem querer ficar do lado de quem não quer navegar

Faça como o velho marinheiro

Que durante o nevoeiro

Leva o barco devagar”.

Márcia Semer é Procuradora do Estado, Mestre e Doutoranda em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP, Secretária Geral do Sindiproesp.

  • Artigo publicado no canal ¨Justificando”, 15 de março de 2017.
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