O CASTELO E A ADVOCACIA PÚBLICA

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-JOSÉ NUZZI NETO-

Chegavam ao fim os anos 60, eram tempos de desdobramentos duros do golpe de Estado, embora haja quem prefira dizê-lo mero movimento. Depois de O Processo e Na Colônia Penal, enfrentei a obra derradeira – e enfrentamento porque a tradução, então disponível, acomodava-se à sintaxe alemã – frases longas, subordinadas enfileiradas –, além de constituir grito pungente contra a burocracia que se autojustifica.

Voltei agora a O Castelo, depois de meio século. E encontro nele, como sempre nas releituras, particularidades de que não me lembrava, ou de que antes não me havia dado conta. Há referências a advogados, tidos como seres espertos, “capazes de fazer de um nada tudo o que se quer”, a funcionários, servidores, secretários, todos, absolutamente todos, empenhados em fazer fluir os requerimentos – é o fluxo que importa, não a funcionalidade. Decerto, o trabalho do próprio Kafka no Instituto do Seguro Operário para Acidentes do Trabalho deve ter contribuído para isso: operários acidentados transformavam-se em requerimentos, fichas e casos.

“Quando me iniciei no estudo jurídico, a Constituição era vista como algo para se admirar, não para se executar.”

Enfim, a densidade do texto demandou leitura lenta, lentidão aumentada pelas conexões com a realidade, especialmente com a de minha vida profissional.

Quando me iniciei no estudo jurídico, a Constituição era vista como algo para se admirar, não para se executar. Valiam as leis, valiam os decretos, o texto constitucional era invocado apenas se e quando dava suporte ao que prescreviam as demais normas. Rompe-se essa inversão, que mais de uma vez ouvi proclamada em sala de aula, com a Constituição de 1988. A Constituição passou a ser a norma fundamental, ao Estado já não bastava ser de Direito, deveria também ser Democrático, com tensão permanente entre os polos social e liberal. Não por acaso, já em seu artigo 1º nominam-se como fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana, a par com os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

A Advocacia Pública ganhou nova dimensão. O Título IV da Constituição Federal, dedicado à Organização dos Poderes, abriga quatro capítulos, os três primeiros dedicados aos poderes tradicionais – Legislativo, Executivo e Judiciário – e o quarto às Funções Essenciais à Justiça, a saber, Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia e Defensoria Pública. É dizer: são acolhidas no âmbito constitucional instituições permanentes, que exercem com exclusividade atribuições que o poder constituinte lhes reservou.

Busquei os anais da Constituinte. Neles, tanto quanto abundam os debates a propósito do Ministério Público, poucas linhas se dedicam à Advocacia Pública. Aliás, a própria seção II tinha por título original “Da Advocacia-Geral da União”, embora o segundo artigo tratasse dos Procuradores dos Estados. A impropriedade somente foi corrigida com a EC 19/1998; e persiste a omissão quanto aos Municípios.

Assimetricamente, a Advocacia-Geral da União é referida como instituição, ou seja, órgão coletivo; e, quanto aos Estados e ao Distrito Federal, a alusão é a Procuradores, órgãos singulares. Para a AGU assentam-se os requisitos para a chefia da instituição, algo que não se previu para as demais unidades federadas.

Quero aqui destacar outra assimetria, que diz de perto com as considerações iniciais. Ao Ministério Público foram conferidas três autonomias – funcional, administrativa e orçamentária; aos seus integrantes, garantem-se vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio. Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa, além da iniciativa de sua proposta orçamentária. Já a Advocacia Pública não tem nenhuma dessas garantias específicas.

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou, ao menos em duas oportunidades, pela negativa de independência funcional aos procuradores e pela inconstitucionalidade de autonomia funcional e administrativa à Procuradoria-Geral do Estado. Ressalve-se a auspiciosa discordância do Ministro Néri da Silveira, que em 1997 indagava: “Sem as imprescindíveis independência e autonomia funcionais, como poderá o Procurador do Estado propor as ações previstas pela Lei de Improbidade Administrativa contra o Governador do Estado ou seu Secretário?” Pela independência, em maior ou menor grau de extensão, também os Ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Dias Toffoli.

A doutrina é vasta e sólida a respeito, pelo deferimento de autonomia e independência à Advocacia Pública; dentre outros Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, José Delgado.

A Advocacia Pública presenta o próprio ente público, tem compromisso indissolúvel com a ordem constitucional e as leis a ela submissas. Não hão de ser, seus integrantes, serviçais burocráticos dos senhores dos castelos.

Publicação da revista PUB.

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